domingo, 17 de julho de 2011

Eles querem mudar o mundo


por Verdes Trigos na mídia *
publicado em 23/6/2005.


Na sala de aula, diante de um grupo de jovens boquiabertos, John Keating sentencia: “Não importa o que digam a vocês, idéias e palavras podem mudar o mundo”. A cena do filmeSociedade dos Poetas Mortos (1989) poderia ser a síntese da mente pró-ativa ou da filosofia de boteco. Leia a frase em voz alta e você verá que ela soa óbvia e meio adolescente. Utópica e um pouco engajada. Ainda assim, digam o que quiserem, idéias e palavras podem mudar o mundo.

Seduzido pela literatura e inspirado no filme de Peter Weir, o analista de sistemas Cláudio Silva Graminho criou a Sociedade dos Leitores Tortos (SLT), sediada em Curitiba. A exemplo de outras organizações fechadas, aceita como integrantes somente pessoas apresentadas pelos sócios (quem quiser tentar, pode escrever para tortomor@yahoo.com.br). Realiza uma reunião por mês, com mais ou menos 20 membros e sua lista de discussão na internet conta com 90 nomes. Nos encontros, falam sobre literatura e bebem vinho – não à toa, o logotipo da sociedade é um livro aberto com um saca-rolhas no meio. É comum reunir amigos para ir ao cinema e, depois da sessão, beber qualquer coisa enquanto se conversa sobre o filme. “Nós fazemos isso com livros”, diz Graminho.

O prólogo dessa história aconteceu nos corredores da Companhia Paranaense de Energia (Copel), local de trabalho de Graminho e de outros dez analistas de sistemas, também leitores. Eventuamente, ele conversava com os amigos sobre um livro que estava lendo ou havia lido. Trocavam referências e esperavam pela próxima esbarrada casual – o que acontecia com freqüência. Percebendo que os colegas tinham o interesse pela literatura em comum – e não se conheciam –, decidiu reunir todos de uma vez só e ver o que acontecia.

Para facilitar a troca de informações, precisava criar um grupo de discussão na internet. O grupo precisava de um nome. Por que não Sociedade dos Leitores Tortos? A primeira reunião aconteceu em abril de 2003, com ata e tudo. Graminho lembra de ter montado a lista de e-mails para o grupo com 30 nomes. Esperava a presença de meia dúzia de pessoas e ficou surpreso quando 15 apareceram na reunião.

Embora os sócios-fundadores sejam todos analistas de sistemas, hoje eles se gabam de ter a companhia de advogados, psicólogos, pedagogos e matemáticos –, e uma faixa etária ampla, que parte dos 17 aos 60 e poucos anos. Anderson Guiera está na SLT desde o início e conta que a proposta original era de fazer uma reunião a cada 15 dias, sempre na casa de um dos integrantes. Terminaram organizando uma por mês.

Além de animar os mais preguiçosos a ler e “desmitificar a leitura” – de acordo com os cinco leitores que conversaram com a reportagem –, a SLT acabou gerando competições estranhas. A mais recente delas envolve cinco sócios e uma série de apostas para ver quem consegue terminar de ler primeiro as 672 páginas de O Idiota, de Dostoievski, na tradução de Paulo Bezerra (Editora 34).

Cilas de Freitas, outro sócio-fundador, admite que “não era muito de ler romances”, mas percebeu que as pessoas comentam os livros que lêem “como se falassem de filhos”. Decidiu ler Cândido, de Voltaire, e pegou gosto pela coisa. No dia 28 de maio, a SLT foi incensada por Affonso Romano de Sant’Anna, em coluna no jornal O Globo. Ele cita a sociedade curitibana como um exemplo de ação simples que pode “endireitar” o Brasil. “Basta querer, basta gostar e basta ter alguém com certa liderança que as coisas começam a acontecer”, escreveu Sant’Anna.

Internet

O mundo literário parece viver um momento que desafia os pessimistas. Nos últimos anos, o Brasil ganhou um evento de respeito (a Festa Literária Internacional de Parati que, neste ano, fará o lançamento mundial do novo livro de Salman Rushdie, Shalimar – O Equilibrista), uma revista especializada (EntreLivros) e um suplemento literário (Bravo! Livros). Se ainda não se lê muito no país, ao menos se fala mais sobre literatura. Seja em sociedades fechadas (como a SLT) ou escancaradas, como os sites Verdes Trigos e Literarte.

O estudante de Letras Jorge Augusto Senger, de Ponta Grossa, criou o Literarte (www.literarte.org) como uma ferramenta de apoio ao ensino da literatura. “A primeira fase do projeto é o site, que pretende veicular notícias, críticas, agenda de concursos, textos científicos e também um banco de dados com informações sobre autores clássicos”, explica. A página na internet deve render um software educativo. Senger defende a inclusão de livros na cesta básica e, com seu site, espera criar uma fonte confiável de informações para os leitores e um espaço funcional para a publicação de novos autores.

Irinêo Netto (matéria publicada na Gazeta do Povo, de Curitiba/PR, em 23/06/2005).

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Affonso Romano de Sant`anna - Leitores tortos

Foi há uns dois anos. Em Curitiba. Eu havia terminado uma conferência sobre arte e pós-modernidade e saí com várias pessoas para comer e beber algo. Acabamos pousando num local que acho tinha o nome de Bar do Batata. E conversa vai e copo vem, fico sabendo que existe naquela cidade uma insólita entidade chamada Sociedade dos Leitores Tortos.

O nome não poderia ser mais sugestivo. Remete logo para aquele filme “Sociedade dos poetas mortos”, que relata a vida de adolescentes num internato, que acabam por fazer uma espécie de sociedade secreta para leitura e curtição de poesia. Motivados por um professor de literatura, os garotos abrem seu imaginário através dos livros. Um tema assim aparentemente tão esquisito deu numa obra dramática que teve enorme sucesso e continua a emocionar as pessoas, quer gostem ou não de poesia.

Ao ouvir o nome dessa Sociedade dos Leitores Tortos, lembrei-me que no século XVIII surgiram umas entidades congregando intelectuais de várias áreas que tinham também uns nomes bem esquisitos: Academia dos Felizes, Academia dos Renascidos, Academia dos Seletos etc. Havia nelas um ar meio pomposo ao gosto barroco e rococó. Já o caso dessa sociedade curitibana é diferente.

O fato é que estava ali naquele bar ao meu lado um jovem que deu-me seu email: tortomor@yahoo.com.br. Gosto dessas coisas irônicas. Aprende-se com a vida e com a literatura que a gente deve se tratar com desconfiança e ironia, até mesmo para se adiantar à ironia e à desconfiança alheias.

E o Tortomor, que se chama Cláudio, ia me contando como funcionava esse tipo de sociedade (quase) secreta. Começaram quase por acaso e de maneira bem modesta. Reuniram-se, alguns amigos, para comentar os livros que estavam lendo. Leitura tem disto. Quando a gente gosta de um livro (é a mesma coisa com um filme), fica cutucando as pessoas “você precisa ler”, “eu adorei, leia que vai curtir”. Então, nessa SLT, cada um lia o que bem queria. Não havia nada programado. Iam lendo e se encontrando na casa de um ou de outro para trocar idéias sobre o que liam. E a coisa foi engrenando. Começaram a aparecer pessoas interessadas em ver e participar do grupo. De repente, eram já dezenas de leitores tortos encontrando-se regularmente para trocar idéias e emoções em torno dos livros lidos.

Perguntei ao Tortomor que tipo de gente estava se aglutinando ali. Para minha surpresa não eram escritores, e sim engenheiros, advogados, administradores, psicólogos, etc. Isto provocou em mim maior curiosidade. Pensei: eis um modelo de atividade de leitura que pode ser repetido em qualquer comunidade. Não precisa de patrocinador, não carece de ser aprovado pela Lei Rouanet. Basta querer, basta gostar e basta ter alguém com certa liderança que as coisas começam a acontecer. E eles estão lá, na deles. Simplesmente curtindo o que lêem. Ou seja, juntaram as duas pontas do fenômeno leitura: o pessoal e subjetivo com o social e comunicativo. Não falam de redistribuição de riquezas? Está aí a redistribuição de leituras. O imaginário compartilhado.

A partir de então, em várias conferências e palestras por este mundo de Deus e do Diabo, ou conforme essa desastrosa e boba disputa entre o PSDB e o PT — esse mundo de “perus bêbados” e “gambás com mau cheiro” — me referia sempre a esse grupo singular de leitores. Que fim teriam levado? Pois outro dia, escapando um pouco da Bienal, no Rio, fui participar da 20 Bienal de Bento Gonçalves. Anotem, é a vigésima. Esses gaúchos são exemplares em termos de investimento em leitura. Muitas cidades com cem mil habitantes naquele estado têm suas feiras do livro. E como faço sempre que viajo, peguei uma cadernetinha na qual anoto coisas e lá redescubro o endereço do nosso Tortomor. Resolvi escrever-lhe para saber se já havia se endireitado. E qual não foi minha surpresa quando recebo a informação que o grupo cresceu ainda mais. Conta-me Cláudio: “Me lembro o quanto você ficou empolgado com a idéia deste clube de leitura. Naquela época ainda estava no início. E não tenho dúvidas de que seus elogios, que foram repassados aos demais Leitores Tortos, ajudaram a consolidar a idéia. O encontro do mês passado, o 24, foi o comemorativo de 2 anos de SLT. Contamos com quase 90 inscritos e o grupo agora está cada vez mais empolgado e cheio de idéias”.

E por aí vai narrando que fazem até umas atas engraçadas sobre os encontros. Embora no princípio não fossem escritores, o vírus da leitura os contaminou comprovando aquelas coisas que Machado e Borges diziam: ler é uma forma de escrever, escrever é também uma forma de ler. Por isto, estão passando para o segundo estágio dessa dialética: começam a escrever, e revelam que “uma dessas idéias é o lançamento de um livro com os escritos (contos, crônicas, poesias) dos próprios leitores. O livro ainda não tem nome, mas é tratado por nós humilde e carinhosamente de ‘O Grande Livro da SLT’. A organização é por parte do Adonai Sant’Anna e os textos já estão sendo colhidos, com prazo até junho/julho para finalização da captação”.

Tenho visto algumas coisas outras insólitas no terreno do livro e da leitura. Há pouco tempo estive em Brasília, onde o açougueiro Luis Amorim instalou uma biblioteca em meio a costelas, fígados e maminha de alcatra. E não apenas botou estantes de livros, desventrando assim o saber, como empresta livros para quem quiser, além de aprontar uma espécie de festival, o “Açougue cultural”, reunindo música e literatura, na quadra em que trabalha em Brasília.

Outro dia, lá em Sabará, Minas, um rapaz de 26 anos, Marcos Túlio Damasceno, dono de uma borracharia, montou uma biblioteca pública dentro de sua oficina . Quer dizer, em vez de folhinha com mulher pelada, o moço botou livros nas prateleiras para emprestar aos que ali se dirigem. Ele só tem o ensino médio. Quer ainda estudar letras, mas já está dando aulas de cultura a muito letrado por aí.

Como se vê, há mais leitores tortos do que se imagina. Vai ver que é por aí que se começa a endireitar este país..


(Texto extraído do Jornal da Poesia - publicado no "O Globo" on line em 11 de Junho de 2005)


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